
Um tiro de rifle “papo-amarelo” decepou o dedo do delegado, que apontava onde seus policiais se esconderem daquela chuva de balas. Era apenas começo do século XX, no sertão da Bahia, quando Anésia Cauaçu, comandando um bando com mais de cem cangaceiros, fez o disparo certeiro com seu winchester calibre 44.
Justiça seja feita, apesar de Virgulino Ferreira ter ganhado fama como Rei do Cangaço nos anos 1930, a verdadeira rainha não foi a sua companheira Maria Bonita. Afinal, mais de uma década antes de Lampião possuir um bando próprio, a baiana Anésia Adelaide de Araujo já comandava um exército fora da lei – os Cauaçus.
A comparação com outras mulheres do cangaço é necessária, para destacar a importância de Anésia Cauaçu para a afirmação feminina no Nordeste brasileiro. É o que mostra o estudo de Kalyane Bárbara Novaes (Associação Nacional de História – ANPUH): “Maria Bonita, mulher de Lampião, bordava, costurava, cozinhava, cantava e tinha filhos no mato. Bastava-lhe acompanhar o marido. Quando inevitável, tomava parte de uma luta, mas de modo geral, apenas assistia”. Também era assim com Dadá, esposa de Corisco, e com a maioria das companheiras de cangaceiros.
Mas, no bando dos Cauaçus, Anésia não só combatia na linha de frente com sua mãe e irmãs, como comandava o bando: “Anésia foi a primeira mulher a entrar para o cangaço. Diferente de Maria Bonita, jamais foi esposa do chefe de um bando, mas, uma Lider”. Era hábil com armas de fogo e com a peixeira.
Como acontecia com a maioria dos bandos de cangaceiros, a origem dos Cauaçus estava relacionada com desentendimentos locais, muitas vezes de vizinhança, agravados por disputas de terra e pela política local. Quando os desafetos não eram incorporados aos grupos de jagunços dos fazendeiros e políticos, acabavam formando esses bandos independentes, que ficaram conhecidos como cangaceiros.
Anésia Cauaçu contava com o apoio de proprietários de terra e autoridades da região de Jequié, que lhe forneciam esconderijo, suprimentos, armas e munição em troca do reforço armado dos seus cangaceiros para intimidar ou eliminar adversários. Os vilarejos eram poupados ou saqueados dependendo de quem fosse o líder político da região. A liderança política regional também determinava quais bandos de cangaceiros seriam perseguidos com maior vigor, a depender de quem lhes dava cobertura. Esse poder paramilitar nos sertões do Nordeste e parte do Sudeste predominou no século XIX e metade do século XX, até que a ditadura do Estado Novo pôs fim ao cangaço.
As atividades de Anésia Cauaçu, cresceram e se espalharam Bahia afora, a ponto de o então governador despachar volantes (destacamentos policiais) para dar fim ao que chamou de “Conflagração Sertaneja”, segundo o artigo de Kalyane Novaes: “O que antes era um conflito entre clãs, formados por familiares e agregados, passa a se constituir numa quase guerra civil, na qual eram utilizadas armas avançadas e táticas de guerrilha”. A polícia baiana recorreu às táticas utilizadas anteriormente com sucesso na Guerra de Canudos.
Foram necessárias várias expedições policiais e embates violentos para que o poderoso bando de cangaceiros Cauaçus fosse desmantelado. Anésia chegou a ser capturada pacificamente em uma fazenda onde buscara moradia depois de abandonar o cangaço. Esteve presa, mas não existe registro oficial de sua vida e morte depois disso, além das versões populares. A Rainha do Cangaço permanece no imaginário cultural baiano como símbolo de independência feminina e resistência.
Felipe Sampaio: Cofundador do Centro Soberania e Clima; atuou em grandes empresas e 3º setor; foi empreendedor em mineração; ex-diretor do Instituto de Estudos de Defesa no Ministério da Defesa; dirigiu o sistema de estatísticas do Ministério da Justiça; foi secretário executivo de Segurança Urbana do Recife.
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