
Assumi o gabinete no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em abril de 2022, com uma inquietação que não era apenas administrativa, mas ética: a quantidade de processos parados, conclusos sem pauta, revelava uma Corte que, mesmo bem-intencionada, não alcançava com pleno êxito sua missão mais elementar de concretizar, com efetividade, os direitos fundamentais e sociais. Tratava-se de uma situação grave: havia mais de 41 mil processos tramitando no meu gabinete.
Como um dos integrantes da 1ª Seção, nossa competência envolve, principalmente, matérias previdenciárias e de servidores públicos militares e civis. Ambas as temáticas possuem um forte viés social.
A maior parte dos processos trata de benefícios de natureza alimentar, destinados a idosos, pessoas com deficiência, hipossuficientes e trabalhadores rurais.
Em não poucos casos, a parte autora, embora tivesse direito, sequer estava viva quando o processo enfim era julgado. A Justiça tardia é, nesse contexto, uma negação concreta da dignidade da pessoa humana. Foi diante dessa realidade que decidi idealizar o projeto Gabinete Zero.
A ideia não nasceu de manuais de gestão, tampouco de modelos importados. Nasceu de uma urgência social. Nasceu da compreensão de que a razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII) não é apenas um direito procedimental, mas condição para a própria existência do direito material efetivamente tutelado pela Constituição.
O próprio Conselho Nacional de Justiça já reconheceu que a matéria previdenciária representa o maior gargalo do Judiciário brasileiro.
A quem interessa uma vitória judicial que chega tarde demais? Com essa indagação como norte, iniciei com minha equipe um processo profundo de reorganização interna. Suspendemos temporariamente as rotinas ordinárias e passamos a dedicar todos os esforços à triagem e ao mapeamento do acervo.
O objetivo era um só: estruturar um modelo funcional capaz de enfrentar o passivo acumulado, sem sacrificar a qualidade das decisões e sem sobrecarregar a equipe. A proposta se fundamentou em racionalidade, planejamento e responsabilidade social.
Estruturamos três ferramentas principais, construídas inteiramente com os recursos disponíveis no Tribunal: a Tabela de Classificação de Matérias, a Tabela de Triagem e a Tabela de Pautas de Julgamento. Com elas, passamos a organizar o acervo por critérios objetivos, como natureza da matéria, classe recursal e antiguidade do processo.
Gestão digital
Criamos um sistema de gestão totalmente digital, compartilhado em nuvem, que permitia distribuir tarefas de forma especializada, acompanhar o andamento dos processos em tempo real e montar pautas de julgamento equilibradas e estratégicas.
Essas tabelas passaram a funcionar como veias e artérias do gabinete. Mas, como todo organismo, só funcionariam com um coração pulsante. E esse coração foi a mudança de cultura organizacional que conseguimos implementar.
Substituímos a lógica da reação pela da prevenção. A reatividade foi dando lugar à inteligência organizacional. Criamos um ambiente de corresponsabilidade, onde cada servidor sabia seu papel, seus prazos e sua contribuição concreta para o funcionamento do gabinete.
Desde o início, participei ativamente de cada etapa. Não deleguei a liderança. Coordenei, escutei, revisei pessoalmente todas as minutas e mantive diálogo diário com todos os integrantes da equipe.
Considero que a atuação do magistrado na condução do gabinete não pode ser burocrática. É necessário envolvimento, presença e direção. Sempre disse à equipe que meu papel era o do maestro da orquestra.
E sem músicos comprometidos, nenhum maestro alcança resultado. Os servidores abraçaram o projeto com dedicação, e foi graças a esse comprometimento coletivo e à sinergia entre chefia e equipe que conseguimos não apenas reduzir o acervo, mas eliminar por completo os processos conclusos sem pauta.
A prática não é apenas eficiente. Ela tem um claro viés social. A grande maioria dos processos do gabinete diz respeito à proteção de direitos de pessoas hipossuficientes. Estamos falando de aposentadorias rurais, benefícios assistenciais, pensões. Demandas cuja natureza alimentar exige resposta célere e efetiva.
A prestação jurisdicional não pode se limitar à técnica decisória. Ela precisa ser sensível, tempestiva e orientada pela realidade concreta do jurisdicionado.
O Gabinete Zero, nesse sentido, é mais do que uma metodologia. É uma forma de realizar, na prática, a promessa da Constituição: a tutela efetiva dos direitos fundamentais, insculpida no artigo 5º, inciso XXXV. E efetividade não se confunde com mera produtividade. Exige qualidade, análise técnica, coerência e empatia.
Com a estabilização do novo modelo, identificamos o momento de avançar ainda mais. A etapa mais exaustiva do fluxo, há três anos, quando assumi o gabinete, era a triagem. Ali se concentrava grande parte do esforço repetitivo e manual.
Decidimos, então, neste semestre, atualizá-la de forma estratégica, com o emprego da inteligência artificial. A IA está sendo incorporada como ferramenta auxiliar, voltada à pré-triagem e à extração de dados objetivos.
Mas jamais houve — nem haverá — a pretensão de substituir o componente humano. A análise jurídica, a elaboração de minutas e a revisão permanecem como atividades eminentemente humanas, dependentes da experiência, da sensibilidade e do julgamento profissional da equipe. A tecnologia é aliada, mas não substituta. É meio, não fim — devendo estar sempre sujeita a um processo de dupla revisão.
Eficiência
Os resultados alcançados superaram as expectativas. Em menos de três anos, o gabinete deu baixa em mais de 64 mil processos, com um índice técnico elevado: menos de 1% dos julgados retornaram dos Tribunais Superiores. Todos os processos conclusos passaram a ser imediatamente pautados.
O fluxo tornou-se previsível, equilibrado, transparente. A prática foi reconhecida, primeiramente, pela Ordem dos Advogados do Brasil Nacional e, posteriormente, pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Conselho Nacional de Justiça, tendo despertado o interesse de magistrados de outros Tribunais, que buscaram conhecer a metodologia para replicá-la e implementá-la em suas unidades.
A experiência demonstrou que é possível fazer mais com os mesmos recursos, quando se parte de um planejamento racional, de uma cultura de cooperação e de uma liderança comprometida.
A efetividade da jurisdição não depende exclusivamente de investimentos em tecnologia de ponta ou reestruturações administrativas amplas. Muitas vezes, o que falta é clareza de propósito, método e coragem para mudar rotinas cristalizadas. O Gabinete Zero não é uma solução milagrosa.
É uma resposta possível, viável, replicável, exportável, construída com inteligência, disciplina e empatia. É um exemplo concreto de como o Judiciário pode se renovar a partir de dentro, sem abrir mão da técnica e da qualidade das decisões, mas sempre com os olhos voltados à realidade do cidadão.
A jurisdição não é uma função abstrata. É uma responsabilidade viva. E quem julga precisa entender que o tempo do processo é, para quem aguarda, o tempo da vida.
Por isso, mais do que julgar, o desafio é entregar Justiça — no tempo certo, com a técnica correta e com o compromisso ético que a Constituição exige. Essa é, e sempre será, a missão que orienta meu trabalho.
Eduardo Morais da Rocha é desembargador federal do TRF-1
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